30 de abril de 2009

19 de abril de 2009

A minha gratidão

A minha gratidão tem corpo debilitado e algumas rugas na face. Tem os cabelos desbotados pela falha da tinta que não foi pintada no último mês. Conhecemos-nos há anos, e no começo eu que era a gratidão dele; o mundo dele; o amor e o cuidado dele; o medo e o orgulho dele. Aquela gratidão foi crescendo ali, sem pedir licença nem perguntando "como" e "por que". Era para ser, razão de existir.
Quando nos conhecemos, ele já estava pra lá dos 40 anos. Aliás, já estava para mais dos 50. Revertendo expectativas daqueles que têm mente pequena e coração ferido, ele decidiu ser pai. E sendo pai me ganhou, me escolheu sem saber como seria, mas desejando que fosse. Que eu fosse alguém independente dele, que o amasse muito, que assistisse o jornal nacional e o horário eleitoral gratuito com ele todas as noites.
Ele quis coisas que não conseguiu, como que eu não me decepcionasse quando percebi que ele gostava de beber, que eu nunca chorasse por um homem que não me merecesse, que a vida nunca me desse uma rasteira, que eu fosse mais compreensiva com as falhas dele e com as minhas também.
Entre as coisas que quisemos e não conseguimos obter um do outro, percebemos que no meio das faltas e das falhas sobrou espaço para os acertos que o amor provoca. Mesmo sem nunca exigir nada em troca nos fizemos amáveis um para o outro. Cada dia, mais um dia, mais uma briga ou mais uma conversa gostosa na varanda. Um presente inesperado ou um esporro necessário. Nos completávamos assim.
Ele nunca levantou a mão pra mim, não me chamou a atenção na frente dos outros ou deixou faltar qualquer coisa dentro de casa. Não aprovou muitas das minhas escolhas, mas sempre ficou ali, observando de longe.
Do meu lado, nunca deixei que falassem mal dele perto de mim, e, de uma forma ou de outra, nunca tirei do meu norte não ser a pessoa que ele não gostaria que eu fosse. Não aprovei muitas de suas atitudes, mas não deixei que tirassem de dentro de mim a escolha de amá-lo incondicionalmente.
Ele perdeu a mãe quando eu já havia nascido, perdeu a única irmã há pouco mais de dois anos. Eu o ganhei de presente quando já tinham programado que eu viria ao mundo mesmo sem saber quem cuidaria de mim. Ganhei dois irmãos, uma mãe e uma família inteira no pacote.
E ele cuidou tão bem da gratidão dele. Defendeu, alimentou e valorizou como se tivesse descoberto um tesouro escondido no fundo do armário. Exibiu, adorou e admirou como se ganhasse um troféu de cabelos crespos e pele morena. Apostou e almejou como se necessitasse de um prêmio da loteria.
Nos últimos dias, fizemos um trato silencioso. Sem pedir, ou sem pensar que um dia aquilo poderia acontecer, mas por necessidades do coração e da dor, trocamos de lugar. Ali, naquele quarto de parede azul e com uma televisão que não funciona, virei a mãe e ele o filho.
O meu filho atende quando o chamo de pai. Durante a noite acorda precisando de cuidados. Dos mesmos cuidados que recebi dele quando os papéis familiares estavam na ordem natural. Das coisas que me ensinou, repasso à minha mente e às minhas mãos o dever de banhá-lo, de trocar sua fralda, vesti-lo, escovar seus dentes e alimentá-lo. Prestar atenção no horário dos remédios...
...Segurar as mãos dele, assim como ele fez quando precisava me ensinar a atravessar a rua ou andar de bicicleta. E eu choro por ele, como ele chorou comigo toda vez que ralei meus joelhos no asfalto ou tive febre alta causada pela amigdalite.
O meu pai, o meu espelho, o meu bebê tem me ensinado a chorar gritando baixo sozinha no quarto, a implorar aos céus que tudo dê certo, e que neste teste nós dois passemos com nota máxima. Sem pedido prévio, está me ensinando a ser mãe, a abandonar o sono pesado para velar o dele.
Tem me feito perceber que voltaremos ao pó, que só amor de pai e mãe transcende qualquer barreira física. E me ensinado a agradecer por todo aquele bem que já sabia que a vida havia me dado de graça quando abri os olhos para o mundo.
Quero que ele volte pra casa. Curado. Que tudo isso seja apenas um susto. Quero tomar um copo de vinho com ele e assistir o noticiário. Enquanto não pudermos fazer isso, vou aqui de um jeito ou de outro, com os olhos abertos demais, enxergando muita coisa dolorida, com o rosto ardendo de tanta lágrima, com o desabafo de quem está tremendo de medo e congelando de incompetência, com as risadas raras cada vez que dou cada vez que ele reage com esperança. E com a gratidão se estendendo aos amigos que estão por perto, mesmo de longe, em oração. Quero poder ser filha e que ele volte a ser meu pai.

4 de abril de 2009

Dia Branco


Quando era criança, aquele dia deveria ser cor-de-rosa. Nos desenhos do caderno da escola seria céu azul, sol com sorriso amarelo, nuvens de cantos arrendados. As flores pareciam bonequinhas. E a bonequinha era feita de linhas finas como palitos de dentes. Naquele tempo, o desenho era rascunho fácil. Brincadeira da aula de artes, cenário do enfeite das festas de brigadeiro e música da Xuxa. Pintura de quem só via o colorido das coisas. Outro dia, fui desenhar novamente. O rascunho do mundo que eu via. As cores deveriam ser mais secundárias ou terciárias, os cantos melhor definidos. Não eram. Estavam ali a boneca de palito de dente, o sol sorrindo com raios amarelos e as flores bonequinhas.


Desenhe o coração dos seus sete anos de idade. Desenhe-o novamente agora, aos 18, aos 20, aos 26, semana passada, ontem. Mudou? No meu só a cor mudou. Era rosa, do mundo cor-de-rosa, do fundo vermelho. Agora é branco. Como o dia branco da música do Alceu. Branco. Sem contorno, branco pela limpeza que algumas águas visionárias provocam. Branco pela reunião de todas as cores. Branco pela paz de reconhecer que a preocupação é desnecessária, porque o destino sempre cumpre seu papel. E talvez, só talvez, os traços do papel nunca mudaram porque a mão que o fez era regada de vontade e não de medo. Conjunção que resulta naquilo que alguns chamam de coragem. Expansivo, vivo!


Um dia como aquele. Como aquele dia do desenho. Dia desenhado na mente da criança que quase afirma que não cresceu só porque acha que não aprendeu a desenhar. Ou dia do desenho eterno, que não muda com o tempo. Aquarela do futuro, da escolha de onde estar, de como ser. Da certeza dos sonhos que não morrem. Do caminho percorrido de sandália rasteirinha, pelas linhas tortas, mas com vitória na chegada.


O dia vira noite, as estrelas parecem brancas perto da escuridão do céu. Nem toda lua cheia é amarela, nem toda correta distância entre dois tempos é uma reta. Mas a boneca ainda é feita de linhas de palito de dente. O sol ainda sorri amarelo e o céu tem um tamanho maior do que apenas o terreno dos anjos bons. Certas coisas nunca mudam. Ainda bem.

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